domingo, 23 de setembro de 2007

Encenação

Viva!

De entre muitas peças que leio ou assisto, meia dúzia delas ficam na minha lista imaginária de peças a encenar e a produzir antes de morrer. La Nonna, de Roberto Cossa, figurava no “top” desse rol desde que assisti à estreia da mesma, pelo grupo Teatroesfera, encenado pela Paula Sousa no Teatro Armando Cortez. Porque é que gostei tanto desta peça? Boa pergunta! São tantas as razões, e podia enumerá-las seguidamente, mas em vez disso, apenas deixo algumas ilações e desafio o espectador a encontrar a resposta ao longo do que vai assistir esta noite.

Talvez por ser um texto inusitado, uma situação absurda, cujo suspense prende do primeiro ao último minuto do espectáculo. Ou pela personagem inesquecível da Nonna, que considero ser uma daquelas que deve figurar em qualquer lista (que se pretenda honesta) das dez figuras mais marcantes do teatro universal.

Talvez porque a peça se reveste de uma leveza cénica que corre pelo palco como o voo de uma borboleta, ou pela homogeneidade da interpretação das personagens. Além de que La Nonna é a própria modernidade em cena e, para além disso, um retrato refulgente e vivo do canibalismo social.

Ou ainda talvez porque a cena contagia, comunica e surpreende de uma forma que é impossível ficar distante dela, pelo que adivinho que o espectador não chegará ao final da representação sem que tivesse balbuciado umas palavras, como se quisesse fazer parte da cena.

Ou será porque o autor tem a precisão de um cirurgião, e através do bisturi dramatúrgico, entra e rasga a carne da sociedade, incapaz de deter a voracidade de alguém com quem nos acostumamos a conviver e todos queremos matar. E ainda rimos da tragédia! Somente os mestres o conseguem, e Roberto Cossa consegue. Reparem que a confluência trágica / cómica percorre e se dilui simultaneamente nos domínios do absurdo e do realismo. Esse é um dos segredos para o êxito desta peça.

A obra continua a dar voltas ao mundo, mesmo 30 anos após ter sido escrita. Porquê? Porque continua vigente. Acho que está muito relacionada com a nossa maneira de viver. La Nonna representa a voracidade que se instala no interior da nossa casa e que vai destruindo toda a boa convivência. É um símbolo expressionista do consumismo desapiedado que tomou conta da nossa vida e transformou-se num comportamento generalizado da sociedade. No tempo em que vivemos, ressurge perigosamente entre nós um mal tão ignóbil: o egoísmo. As pessoas vivem cada vez mais de costas voltadas umas para as outras. Competem ferozmente por coisas insignificantes e não olham a meios para atingir fins meramente economicistas e pessoais. O egoísmo corrói a virtude humana, põe a nu o pior que há em cada ser, e tem efeitos irreversíveis. É uma doença contagiante e de cura complicada. Os sintomas estão à vista de todos: solidão, depressão, revolta, guerra, morte...


Ao perspectivar o espaço cénico, procurei que o mesmo fosse concebido numa óptica um tanto ou quanto desproporcionada. Sem a necessidade de exageros, o espaço, o vestuário e a representação conseguem levar-nos numa direcção extraviada entre o possível e o impossível. Reforçar o aspecto absurdo, dramático e cómico da peça é intenção, mas sem perder a carga realista que a obra encerra. Vagueei, deste modo, entre o conto fantástico, o universo de banda desenhada e a vida do dia-a-dia, procurando salientar dessa forma as potencialidades desta portentosa tragicomédia.


José António Barros

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