domingo, 12 de outubro de 2008

Continuam os ensaios

Continuam os ensaios para a peça "Desastre Nu", o novo trabalho de palco da Companhia, inserido no mais vasto projecto que é o (Re)Encontro com António Aragão. Com inevitáveis entradas e saídas de alguns actores, com alguns novos adereços para a cenas, estudo das marcações e um maior à vontade na leitura do texto, o trabalho vai de vento em popa. Ficam para novo reconhecimento algumas fotos dos ensaios até à data.

(Fotos CT @ Todos os Direitos Reservados)

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Passagens de Aragão III

Caríssimo Pimenta

Funchal, 13 junho, 82

Principiei a escrever-te logo no dia 8. Entretanto interrompi no dia 10 e só hoje acabei este pedaço de carta.
Em virtude de no dia 10 ser dia da pátria resolvi também não fazer nada. Tudo fechou. As repartições, comércio e correios fecharam. Na sexta-feira fechou tudo outra vez. Por tabela. Porque estava no meio. Não fazia sentido nem valia a pena. Só restaurantes e tascas é que abriram. Quando passei nas ruas quase jurava que ouvia a mastigação. Realmente tratava-se da pátria. E houve discursos como sempre. Como antigamente. A pátria e Camões. O Camões e a pátria. Cerimónias a valer. Soldados a rigor. Músicas tocando. Tudo com dignidade e muito respeito. Disseram que o Camões fazia versos inspirados e era também de «índole buliçosa». Que, no seu tempo, o camões chegara a levar «numa mão a espada e na outra a pena». Realmente deveria ter uma notável habilidade. Ah como admiro as maravilhas lusitanas! As glórias lusas. O comer luso. A água do luso. O frevor luso. O luzismo luzido e luzidio.
Camões também repórter de guerra! Arriscando a própria pele. Temos de concordar que é bonito. Elevado. Heróico. Invulgar. Como se comportaria ele, hoje, nas guerras do Líbano ou das Malvinas? Com mísseis numa mão e gravador de pilhas na outra? Mortífero e inspirado!
E continuo à procura de pistas. Não me esqueci. Mas, agora, é difícil. Anda tudo à volta da pátria, do Camões, das caramelas, dos reises, das bichas para a gasolina, dos filmes portugráficos, das costoletas de porco com batatas fritas, das histórias dos mísseis, do pudim flan, dos aumentos e mais aumentos, etc. E só para falar no essencial.
E os três farros? Nada de três farros? Gostaria de dizer-te não sei bem o quê, do meu alvoroço. Sei que estamos metidos na mesma alhada. Tanto tu como eu. Mas então como escapar disto? Como? Nem chamo horror. Talvez antes odor de algo escondido. Porquê o excessivo cheiro a queijo espalhado por toda a parte? Porquê? Inspiração gloriosa e insubmissa?
Outra vez a mesma questão das vacas ou dos ministros a propósito das vacas? O cheiro da pátria desde o começo da nacionalidade?
Às vezes chego a pensar que talvez se pudesse perceber algo lançando mão dum sério e profundo tratado sobre os excrementos. Um verdadeiro tratado da merda. A sério. Por este lado seduz-me um pouco. Mas quem me garante que não seja demasiado escolástico? Então desamparo-me. Desisto.


Fernando Aguiar, António Aragão e Alberto Pimenta antes (ou depois) da realização de um poema visual conjunto, que esteve exposto na Galeria Diferença, 1985 (foto "in" http://ocontrariodotempo.blogspot.com)

lisboa, 20.2.83

meu caro aragão:

esta noite, acho que das emoções todas por que tenho passado, tive um sonho retumbante. um homem e uma mulher a foder, ambos com duas enormes auras. ou seriam só duas auras? Mas as auras não fodem sozinhas, precisam do corpo. ela em cima dele, deitada, corpo colado com corpo, aura misturada com aura...então por trás veio um anjo de asas brancas a voar e zás!, enfaticamente enfia-lhe no cu! ela em erosão com o tipo em baixo, o anjo em erosão com ela. que trio! que quadro! um verdadeiro fra angelico!
depois o anjo retirou-se devagarinho, desenroscou o próprio caralho (que num anjo tinha de ser postiço, e aqui o sonho funcionou com uma lógica impecável) e começou a comê-lo! «uhn... bendito o fruto do teu ventre!», disse ele afastando-se no ar, batendo com as asinhas. a mulher entretanto também se levantou e tudo se desvaneceu. não lhe vi a cara e tive pena porque esta era sem dúvida a galinha dos ovos de ouro de que fala aleister crowley na carta ao frater saturnus.
mas se te escrevo é só para te dizer que ontem reparei que o tal restaurante ao lado do dentista ( o pedra de moiros, que por sinal tem o letreiro cada vez mais estragado) tem agora um supermercado anexo, com um átrio regional com uma espécie de palhota que tem estes dizeres em cima: frangos alheiras roscas regueifas ovos. o supermercado pertence também ao dono do restaurante, que além disso tem uma fábrica de sapatos e é dono do aviário local e também vereador e presidente do clube de futebola e, quando há eleições, distribui botas e copos em troca de votos. estás a ver? é um autêntico tornado.
Um superabraço do teu
a.


ALBERTO PIMENTA. ANTÓNIO ARAGÃO
“in” Os 3 farros-descida aos infernos

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Passagens de Aragão II


LIBERDADE. CARAVELAS. FILETES. ETC

realmente a gente pode? a gente serve? a gente presta? a gente trabalha para a família e veste-se de destino e caspa com satélites para a gente quando tudo faz falta? mas
afinal quem consentiu outro follow-up com restos de militares e sida dos filetes e mais sustos com muito tempero no prato? quem falou de liberdade e decência no horror plantado na horta?
cá por mim comporto-me com delicadeza. sou educado. andei na escola. fiz as contas certas. aprendi boas maneiras. e mesmo quando chupava pastilhas elásticas e apalpava o cu `professora acreditava na liberdade e na metafísica. depois
ensinaram-me muita coisa que não vem nos livros e o Mercado Comum e o non-sense das taxas de câmbio na parte mais lixada da cabeça. então
ainda por cima havia o pasmo despido das garotas ou outra coisa qualquer sempre por detrás da porta.

e assim a gente pode? a gente serve? a gente presta? mas
ainda escrevi a minha assinatura logo por baixo do parlamento europeu e do assombro do peixe servido na travessa. então
(acredita querida acredita) vi o know how eurocrata e os sacanas todos com candelabros e imensos de hortaliças. exactamente desse modo de liberdade com naftalina e o hábito recíproco de fazer caca. e
de seguida houve a tal história capitalizada da gente com mais salada além dos filetes com sida no prato. tudo a curto prazo e facturado celestialmente na conta. depois
foi a tal questão do Terceiro Mundo na velocidade do sangue dos insectos e a gente sempre a ver um filme com muitas putas no escuro quando a gente acontece.

mas querida a gente pode? a gente serve? a gente presta?
e os tais gajos com vacas e petróleo e (que zás!) a meter pelo cu o que já não cabe no fogo da boca. e que é assim a favor do povo com outros mares e outras rotas e caravelas de borla para passear a malta. mas isto e aquilo e frito e cozido.(...)

ANTÓNIO ARAGÃO
“in” PÁTRIA.COUVES. DEUS. ETC.
COM TESÃO. POLÍTICA. DETERGENTES.ETC.
( 3ª Edição, Lisboa 1993)