terça-feira, 7 de outubro de 2008

Passagens de Aragão III

Caríssimo Pimenta

Funchal, 13 junho, 82

Principiei a escrever-te logo no dia 8. Entretanto interrompi no dia 10 e só hoje acabei este pedaço de carta.
Em virtude de no dia 10 ser dia da pátria resolvi também não fazer nada. Tudo fechou. As repartições, comércio e correios fecharam. Na sexta-feira fechou tudo outra vez. Por tabela. Porque estava no meio. Não fazia sentido nem valia a pena. Só restaurantes e tascas é que abriram. Quando passei nas ruas quase jurava que ouvia a mastigação. Realmente tratava-se da pátria. E houve discursos como sempre. Como antigamente. A pátria e Camões. O Camões e a pátria. Cerimónias a valer. Soldados a rigor. Músicas tocando. Tudo com dignidade e muito respeito. Disseram que o Camões fazia versos inspirados e era também de «índole buliçosa». Que, no seu tempo, o camões chegara a levar «numa mão a espada e na outra a pena». Realmente deveria ter uma notável habilidade. Ah como admiro as maravilhas lusitanas! As glórias lusas. O comer luso. A água do luso. O frevor luso. O luzismo luzido e luzidio.
Camões também repórter de guerra! Arriscando a própria pele. Temos de concordar que é bonito. Elevado. Heróico. Invulgar. Como se comportaria ele, hoje, nas guerras do Líbano ou das Malvinas? Com mísseis numa mão e gravador de pilhas na outra? Mortífero e inspirado!
E continuo à procura de pistas. Não me esqueci. Mas, agora, é difícil. Anda tudo à volta da pátria, do Camões, das caramelas, dos reises, das bichas para a gasolina, dos filmes portugráficos, das costoletas de porco com batatas fritas, das histórias dos mísseis, do pudim flan, dos aumentos e mais aumentos, etc. E só para falar no essencial.
E os três farros? Nada de três farros? Gostaria de dizer-te não sei bem o quê, do meu alvoroço. Sei que estamos metidos na mesma alhada. Tanto tu como eu. Mas então como escapar disto? Como? Nem chamo horror. Talvez antes odor de algo escondido. Porquê o excessivo cheiro a queijo espalhado por toda a parte? Porquê? Inspiração gloriosa e insubmissa?
Outra vez a mesma questão das vacas ou dos ministros a propósito das vacas? O cheiro da pátria desde o começo da nacionalidade?
Às vezes chego a pensar que talvez se pudesse perceber algo lançando mão dum sério e profundo tratado sobre os excrementos. Um verdadeiro tratado da merda. A sério. Por este lado seduz-me um pouco. Mas quem me garante que não seja demasiado escolástico? Então desamparo-me. Desisto.


Fernando Aguiar, António Aragão e Alberto Pimenta antes (ou depois) da realização de um poema visual conjunto, que esteve exposto na Galeria Diferença, 1985 (foto "in" http://ocontrariodotempo.blogspot.com)

lisboa, 20.2.83

meu caro aragão:

esta noite, acho que das emoções todas por que tenho passado, tive um sonho retumbante. um homem e uma mulher a foder, ambos com duas enormes auras. ou seriam só duas auras? Mas as auras não fodem sozinhas, precisam do corpo. ela em cima dele, deitada, corpo colado com corpo, aura misturada com aura...então por trás veio um anjo de asas brancas a voar e zás!, enfaticamente enfia-lhe no cu! ela em erosão com o tipo em baixo, o anjo em erosão com ela. que trio! que quadro! um verdadeiro fra angelico!
depois o anjo retirou-se devagarinho, desenroscou o próprio caralho (que num anjo tinha de ser postiço, e aqui o sonho funcionou com uma lógica impecável) e começou a comê-lo! «uhn... bendito o fruto do teu ventre!», disse ele afastando-se no ar, batendo com as asinhas. a mulher entretanto também se levantou e tudo se desvaneceu. não lhe vi a cara e tive pena porque esta era sem dúvida a galinha dos ovos de ouro de que fala aleister crowley na carta ao frater saturnus.
mas se te escrevo é só para te dizer que ontem reparei que o tal restaurante ao lado do dentista ( o pedra de moiros, que por sinal tem o letreiro cada vez mais estragado) tem agora um supermercado anexo, com um átrio regional com uma espécie de palhota que tem estes dizeres em cima: frangos alheiras roscas regueifas ovos. o supermercado pertence também ao dono do restaurante, que além disso tem uma fábrica de sapatos e é dono do aviário local e também vereador e presidente do clube de futebola e, quando há eleições, distribui botas e copos em troca de votos. estás a ver? é um autêntico tornado.
Um superabraço do teu
a.


ALBERTO PIMENTA. ANTÓNIO ARAGÃO
“in” Os 3 farros-descida aos infernos

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