domingo, 1 de fevereiro de 2009

Frases escolhidas


No âmbito do projecto (Re)Encontro com António Aragão, com vista a abordar a obra deste autor madeirense e dentro da programação das diferentes actividades realizaremos este Concurso de Artes Plásticas.

Recomendamos aos educadores e aos professores que desenvolvam a unidade de trabalho tendo em conta os interesses dos alunos, partindo da interpretação de algumas frases da obra Desastre Nu de António Aragão, interpretando criticamente as frases escolhidas, de modo a que a obra deste artista seja uma plataforma para diálogo e questionamento sobre aspectos contextuais, temáticos e formais. Por exemplo:

- ‘Sim. Venho de muito longe. De tão longe que quase perdi a noção do tempo. Isto é, do passado e também do presente. Apenas dou pelo futuro. Por isso ando. Continuo andando.’ - Penélope.


As outras frases sugeridas são:

TERCEIRA VOZ: Também o coração que trago não me pertence. Juro que não é meu. Não o sinto como dantes sentia. Certamente mudaram por outro enquanto dormia descuidado. Mas vou queixar-me à polícia. Contar às pessoas influentes. Já não há respeito por nada. Safados. Agora são outros que sentem o que dantes sentia.

OITAVA VOZ: Nem apetece reclamar. É de mais o que se passa. Tudo o que me rodeia não só cheira mal como cheira a falso. Confesso a minha profunda tristeza. Mas basta dizer-lhes que me tiraram o baço e no seu lugar meteram-me um demónio confuso e louco. Não julguem que minto. Estou enlatado mas ainda sinto.

MILITAR SUBALTERNO: Sempre gostava de saber se a guerra acabou ou se vai começar. Não compreendo muito bem o que se passa.

MILITAR SUPERIOR: És parvo. Por mais que te ensine não aprendes. Confundes tudo. Não te recordas dos livros de história da escola? Quase só falavam de guerras e dos homens ligados a elas. A história da humanidade é a história das guerras. Também trago os pés inchados. Depois de descansar vamos comer qualquer coisa.

PROFESSOR: Fala! Deu resultado. Fala! Descobriiiiiiiiiiii. Góóóóóóóóóóólo. Quem sou? Um professor. Embora possa não parecer, sou professor. Vê como me entende?

PENÉLOPE: Para mim é o único tempo possível. Como poderei dizer? É um tempo que trago comigo. Que me pertence. Que me rói por dentro. Que faz parte do que sou. Um tempo interior. Como hei-de explicar melhor? Assim como um tempo sem relógio nem calendário.

PENÉLOPE: Claro que sim. Será um produto novo e de grande qualidade. Então para militares em combate nem se fala. Fornece maior bem-estar à cabeça e, por conseguinte, maior possibilidade mental de ataque e defesa.

MILITAR SUPERIOR: Não. Não Garanto-lhe que não encontrámos o seu marido. E este é só parecença. Está longe de qualquer dúvida. Nunca podia ser um comandante. Aliás não passa dum simples militar subalterno sem quaisquer qualidades especiais. Pode ter a certeza. Se tivesse encontrado o seu marido certamente que lhe dizia.

MILITAR SUBALTERNO: Nunca pensei que ela gritasse daquele modo. Até parecia histérica. Quase já havia esquecido que me chamavam Ulisses lá em casa antes de vir para a guerra. Quem havia de dizer que depois de tantos anos me iria acontecer uma coisa destas? Ela gritou inesperadamente e de tal forma que não me pude conter. Parece histérica.

PROFESSOR: Mas lá por isso não quer dizer que não seja professor. Posso dar lições sem ser em escolas. O importante reside no saber para ensinar. Como os antigos peripatéticos. Nunca ouviu falar nos peripatéticos?

PROFESSOR: (Um tanto mais aliviado) No fundo somos todos iguais. A prova básica dessa igualdade, que tanto se discute, reside principalmente no cheiro comum. Se, em vez de discutirem, as pessoas se cheirassem, muitos equívocos acabariam. Refiro-me principalmente à controvérsia sobre as teorias a favor ou contra a igualdade social. Bastava fazer como nós: cheiravam-se.

MISS: Igualdade? Mas eu sou mulher e o senhor é homem. Sou mais baixa, possuo outro tipo de cabelos, de olhos e de boca, além de muitas outras diferenças, como até de pensamento. Ainda por cima você é professor.

MISS: Já agora você não sabe onde nos encontramos? Agora que estamos mais próximos um do outro, seria bom ajudarmo-nos. Não faz realmente ideia que lugar é este?

SACERDOTE: Talvez consiga ajudar. Trago comigo bons perfumes que posso queimar e melhora o ambiente.

PROFESSOR: (Em voz alta para a Miss ouvir) Até temos perfume para o Concurso. Ah, como eu aprecio a profundidade perfumada da religião! Uma religião sem perfume não seria religião. As invenções e as modas desta sociedade de consumo põem de parte muitas coisas boas para nos impingirem produtos falsificados. Vendem de tudo nos supermercados mas nada de genuíno como o perfume da religião.

MECÂNICO: Posso também ser útil de alguma maneira? Prestar algum serviço? Qualquer coisa para consertar? Banheiras entupidas, fechaduras estragadas, canos de água arrebentados, algumas pequenas avarias ou soldaduras diversas? Em geral trabalho com ferro.

COMERCIANTE: De acordo. Mas gostaria que me explicasse qual é a ordem estabelecida para não cometermos faltas.

PROFESSOR: É muito fácil. A ordem estabelecida reside no respeito pelo que está estipulado anteriormente por nós. Não concordam?

COMERCIANTE: Por enquanto não trago nada. Aguardo uma oportunidade. Pretendo comprar para depois então vender. Mas não consigo encontrar mercadoria que valha o empate de dinheiro com uma margem aceitável de lucro.

PROFESSOR: Não percebo. Será mesmo um ajudante? Parece-se, de facto, com um ser humano mas, devido ao exagerado trabalho a que o obrigam, é muito possível que tenha sofrido profundas transformações mentais e só aparentemente se assemelhe. Talvez esteja até a atravessar alguma fase importante de mutação biológica. Quem sabe? Algum estádio intermediário entre a besta e o homem.

MECÂNICO: Nem os perfumes deste senhor conseguem abafar o mau cheiro do ajudante. Se ele continuar sempre amarrado o cheiro aumenta concerteza. Eu propunha que se realizasse uma troca. Desamarrava-se o ajudante e prendia-se, no seu lugar, o comerciante. O primeiro descansava melhor e o cheiro abrandava enquanto o comerciante seria obrigado a permanecer quieto, o que também contribuía para a diminuição do seu cheiro.

SACERDOTE: Também estou de acordo. Desde que a maioria esteja de acordo sou da mesma opinião, embora não perceba muito bem destes assuntos.

MILITAR SUBALTERNO: Não há nada que pague o descanso. Às vezes penso que certa atracção ou nostalgia que sinto pela morte deve ter no descanso a sua principal razão de ser. Quando um tipo morre começa logo a descansar.

MILITAR SUPERIOR: Mas refiro-me a pequenos objectos de devoção particular. Nem um para amostra. É realmente suspeito. Todas as precauções a tomar são poucas. Bem sei que a religião nos últimos tempos mudou muito. O uso dos objectos religiosos reduziu-se ao indispensável. Abreviou-se.

JULIETA: Também nunca mais vi televisão. Passava as noites mergulhada no escuro solitário e torturado dos meus pensamentos. Inúmeras pessoas que fui encontrando pelos caminhos gemiam e queixavam-se como de costume, por causa do custo da vida piorar de dia para dia. Mas nem uma conversa inteira recordar eu posso. A minha dor não permitia que desse atenção à desgraça alheia.

JULIETA: Não me julguem mal. Talvez pensem que não passo duma inútil. Uma rapariga que apenas procura o Paraíso Perdido para se sentar numa cadeira de baloiço e estender as pernas pela eternidade fora. Estender as pernas e nunca fazer nada.

COMERCIANTE: Lá isso não. Mantenho intacta a minha moral. Comércio clandestino de armas não é comigo. Negoceio com mercadorias normais. Prefiro não correr grandes riscos ao contrário do que muitos fazem. Pouco mas seguro.

RAPARIGA: A tua cabeça é a minha cabeça. Reconheço-a pelos antigos caracóis loiros de que minha mãe falava. As tuas mãos são as minhas mãos. Sentes agora as carícias que neste momento faço? As tuas pernas são precisamente as minhas pernas. Tenho a certeza. Roubaste-me o espaço que vai dos meus pés até ao sexo. E tu olhas o que olho com os olhos que me pertencem. São meus os teus olhos. São meus. E aquele usa os meus braços. Minto embora não pareça. Se minto é porque a verdade dele mente.

REI- Reformas. Urge grandes reformas. Para já as reformas da inflexão, da filiação, da insubordinação, da contaminação e da maldição. Também seria de programar a reconversão do lixo a médio e longo prazo conforme os estômagos. E porque não um regime experimental de macrobiótica para os mais necessitados? Esta lixeira é real.

REI: Já estou farto de gastar saliva contigo. Se continuas na mesma demito-te já de ministro. Trata-se de paz e guerra ao mesmo tempo. Pronto. Mas não penses. Cá estou eu para pensar por ti. Se me elegeram rei compete-me reinar e tu obedeceres.

MINISTRO DA GUERRA: Já vos posso informar que as opiniões andam, em geral, muito alteradas e divididas. Uns naturalmente querem o rei mas outros são contra e até discordam e contestam o processo da eleição real. Palpita-me que, dum momento para outro, possam surgir certas violências e mesmo alguma sublevaçãozinha.

SACERDOTE: Prometo-vos também que continuaremos a apoiar-vos, tapando os ouvidos e cerrando as bocas.

REI: Precisamente. Ah, o meu instrumento favorito. Como vê, serve para tudo. Abre latas, limpa unhas, tem uma pequena lima e descasca toda a espécie de fruta quando há ou quando se encontra barata no mercado. É o que resta do meu património paterno.

COMERCIANTE: Confirmo que se trata de mercadoria importante. Embora pareçam pedaços de coisas sem nexo são dignos da maior consideração. Garantiram-me que fizeram parte do Paraíso Perdido.

MINISTRO DA GUERRA: (Entra perturbado) Notam-se movimentos estranhos junto de algumas lixeiras. Segundo informações recolhidas, parece tratar-se dum movimento revolucionário reivindicativo. Fala-se em maiorias que estão a alastrar cada vez mais de lixeira em lixeira.

RAPARIGA: Para falar verdade nada tenho a contar de suspeito. Vi gente descontente como é costume. Gente armada também se vê sempre. Mas nunca sei de que lado. Ando de lixeira em lixeira e nas lixeiras passa-se quase sempre o mesmo. Os cheiros é que me parecem cada vez mais intensos.

REI: Sem dúvida que se pode considerar muito bonita. Mas isso não basta. Há muita gaja boa por aí. Então havia anjos a dar com um pau. Desculpe falar assim, mas ultimamente ando um tanto nervoso.

REI: Ingratos! Não calculam os sacrifícios de quem governa. Basta esta obrigação de me sentar constantemente no mesmo trono, quando eles, no teatro, sentam-se onde querem e numa cadeira mais cómoda do que esta. Ingratos! E, depois, para que servia um anjo nesta ingrata ocasião? Os anjos não substituem as armas.

SACERDOTE: Seria ir contra a ordem estabelecida, o que nunca foi norma do poder superior. Além disso, também não faz sentido que fosse contra quem pretendeu recompor o Paraíso Perdido.

COMERCIANTE: Garanto que falo verdade. Trata-se duma espécie de salvação. Mesmo que suceda o pior ainda se poderia negociar a reedificação do Paraíso Perdido pelo menos, num outro sítio. Propor o projecto a alguma grande empresa ou a uma dessas companhias multinacionais.

PROFESSOR: Cuidado. Pretendemos sossego e ordem. Que ninguém ouse cometer desacatos ou tente revoltar-se. Será imediatamente castigado. Nada de revoltas.

PROFESSOR: Está enganado. Nós é que mantemos o poder nas nossas mãos e, portanto, revoltosos ou revolucionários são agora os que não têm o poder ou não obedecem às nossas ordens.

SACERDOTE: Compreendo perfeitamente a vossa causa. Espero que compreendam a nossa. Poderei também continuar a missão que me foi confiada?

RAPARIGA: Conservo uma certa lembrança. Embora dantes me tivessem chamado Julieta, a verdade é que sempre fui fiel ao meu marido que há muitos anos partiu para uma interminável guerra e ainda não voltou.

PROFESSOR: A situação não se esclarece facilmente. Somos um desastre nu. Devido ao incomodativo cheiro que tudo exala, determino a intensificação dos perfumes. Todos cheiramos mal. Este cheiro pertence a todos. Apodrecemos. É a nossa metamorfose final. Vá, cheiremo-nos uns aos outros. (Cheiram-se como se pela primeira vez se encontrassem) Todos unidos pelo mesmo cheiro sem distinção de classes.

REI: Mas que conseguirei fazer no futuro já que não me permitem ser rei? Não poderei usufruir duma reforma ou então ser saneado com o vencimento por inteiro? Não sei fazer outra coisa senão ser rei.

in "DESASTRE NU", de António Aragão